Ainda quando era Cardeal, o Santo Padre Bento XVI tinha como  uma de suas fundamentais preocupações a questão da liturgia. Eleito para o trono  de São Pedro, colocou o tema como um dos eixos principais de seu programa de  renovação espiritual da Igreja.
De fato, sem a liturgia não há Igreja. É nela que a Igreja ora  ao Senhor. Melhor dizendo, é nela que o próprio Cristo ora ao Pai (pelo Ofício  Divino), se oferece ao Pai em sacrifício (pela Missa), e comunica aos fiéis o  que conquistou diante do Pai (pelos sacramentos). A liturgia é o cerne da  Igreja, e o meio pelo qual a Igreja cumpre sua função de salvar as almas.
Ademais, se, pelo Batismo, estamos incorporados a Cristo, a  liturgia se torna não só a ação de Cristo, mas nossa unida a Cristo, ou seja, da  Igreja toda, Corpo Místico de Cristo. Pio XII, na célebre Mediator Dei, definia  a liturgia justamente como “o culto público integral do místico Corpo de  Jesus Cristo, isto é, da cabeça e dos seus membros.” 
Por essa razão, soa quase como natural a firme atenção de todos  os Soberanos Pontífices na defesa das normas que regem o culto, evitando toda  imprecisão e falta de zelo em sua celebração, e na incrementação da vida  espiritual de clérigos e leigos mediante uma actuosa participatio na  liturgia, tal qual foi, aliás, pedido pelo Concílio Vaticano II.
Se tal cuidado foi uma constante em quase todos os  pontificados, notadamente os do início do séc. XX, com o chamado “movimento  litúrgico” – iniciado por D. Gueranger, OSB, em sua luta contra o galicanismo  que pretendia, também no terreno da liturgia, fazer escapar a Igreja das Gálias  da autêntica submissão ao papado –, redobrou-se o alerta de Roma sobre o tema a  partir das incompreensões advindas de uma má implementação da reforma litúrgica  pós-conciliar. Não nos embrenharemos, no presente artigo, pois fugiria ao nosso  escopo, discutir a própria reforma de Paulo VI, sua legitimidade ou pontos  positivos e negativos. Sem embargo, cumpre notar que, a despeito de qualquer  excelente intenção dos reformadores, e mesmo das claras rubricas do Missal  Romano adotado, em 1969, pela virtual totalidade da Igreja latina, é notório o  caos litúrgico que se instaurou desde então.
É evidente que os experimentos espúrios já vinham desde antes,  mas com a crise da autoridade que tomou corpo na sociedade civil desde a  revolução sorbonniana de 1968 (“é proibido proibir”), eles se avolumaram dos  anos 70 para cá. Paulo VI mesmo confessava sentir que a “fumaça de Satanás  entrou no templo de Deus” (Discurso em 29 de junho de 1972), o que, mais  tarde, seria explicado pelo Cardeal Noé como uma apreensão diante de tantas  manipulações em relação à Missa, tantas desobediências às rubricas, tantos  desvios e antropocentrismos, a ponto de certos críticos católicos americanos  falarem em “narcisismo clerical”: a liturgia, de serviço do povo a Deus, de  culto público da Igreja, havia se transformado, na prática, em espetáculo  pessoal na qual cada celebrante põe em andamento uma série de criatividades que  considera “pastoralmente melhor”.
Esse o cenário com que se depararam, principalmente, João Paulo  II e Bento XVI. O primeiro chegou a demonstrar, por sua grandiosa Encíclica  Ecclesia de Eucharistia, que, ao lado de grandes luzes a partir da  reforma litúrgica, havia também sombras. Em seu pontificado, para clarear as  tais sombras, veio à lume não só uma melhor edição do Missale Romanum,  como uma dezena de instruções para melhor aplicar as diretrizes litúrgicas, em  que se destaca a direta Redemptionis Sacramentum.
Tal documento, ademais, é de responsabilidade do então Cardeal  Ratzinger que, como acenamos, reiteradas vezes evidenciou a centralidade do tema  da liturgia em sua monumental obra teológica.
Seu “Introdução ao espírito da liturgia” deixava já bem claras  suas intenções como teólogo: era preciso resgatar, como diria mais tarde Mons.  Nicola Bux, autor de “La reforma de Benedicto XVI”, os “direitos de Deus” na  celebração. A liturgia não é um emaranhado de normas simplesmente positivas  feitas por homens, não é um ordenamento puramente racional para que se tenha  decência no culto. Mais do que isso, a liturgia é um culto disposto pelo próprio  Deus, ainda que muitos de seus detalhes se dêem pela autoridade da Igreja e não  diretamente por Revelação. É Cristo mesmo quem celebra a liturgia por meio da  Igreja. Nessa seara, pois, todo cuidado é pouco, e toda reverência nunca é  demais. Por bem menos do que os atuais abusos litúrgicos, Deus fulminou quem  meramente tocava na arca da aliança, simples símbolo de Sua presença, e sombra  do grande bem futuro que é a liturgia cristã...

Nenhum comentário:
Postar um comentário