terça-feira, 21 de junho de 2011

O pensamento litúrgico do Cardeal Ratzinger e a crise na liturgia


Ainda quando era Cardeal, o Santo Padre Bento XVI tinha como uma de suas fundamentais preocupações a questão da liturgia. Eleito para o trono de São Pedro, colocou o tema como um dos eixos principais de seu programa de renovação espiritual da Igreja.

De fato, sem a liturgia não há Igreja. É nela que a Igreja ora ao Senhor. Melhor dizendo, é nela que o próprio Cristo ora ao Pai (pelo Ofício Divino), se oferece ao Pai em sacrifício (pela Missa), e comunica aos fiéis o que conquistou diante do Pai (pelos sacramentos). A liturgia é o cerne da Igreja, e o meio pelo qual a Igreja cumpre sua função de salvar as almas.

Ademais, se, pelo Batismo, estamos incorporados a Cristo, a liturgia se torna não só a ação de Cristo, mas nossa unida a Cristo, ou seja, da Igreja toda, Corpo Místico de Cristo. Pio XII, na célebre Mediator Dei, definia a liturgia justamente como “o culto público integral do místico Corpo de Jesus Cristo, isto é, da cabeça e dos seus membros.”

Por essa razão, soa quase como natural a firme atenção de todos os Soberanos Pontífices na defesa das normas que regem o culto, evitando toda imprecisão e falta de zelo em sua celebração, e na incrementação da vida espiritual de clérigos e leigos mediante uma actuosa participatio na liturgia, tal qual foi, aliás, pedido pelo Concílio Vaticano II.

Se tal cuidado foi uma constante em quase todos os pontificados, notadamente os do início do séc. XX, com o chamado “movimento litúrgico” – iniciado por D. Gueranger, OSB, em sua luta contra o galicanismo que pretendia, também no terreno da liturgia, fazer escapar a Igreja das Gálias da autêntica submissão ao papado –, redobrou-se o alerta de Roma sobre o tema a partir das incompreensões advindas de uma má implementação da reforma litúrgica pós-conciliar. Não nos embrenharemos, no presente artigo, pois fugiria ao nosso escopo, discutir a própria reforma de Paulo VI, sua legitimidade ou pontos positivos e negativos. Sem embargo, cumpre notar que, a despeito de qualquer excelente intenção dos reformadores, e mesmo das claras rubricas do Missal Romano adotado, em 1969, pela virtual totalidade da Igreja latina, é notório o caos litúrgico que se instaurou desde então.

É evidente que os experimentos espúrios já vinham desde antes, mas com a crise da autoridade que tomou corpo na sociedade civil desde a revolução sorbonniana de 1968 (“é proibido proibir”), eles se avolumaram dos anos 70 para cá. Paulo VI mesmo confessava sentir que a “fumaça de Satanás entrou no templo de Deus” (Discurso em 29 de junho de 1972), o que, mais tarde, seria explicado pelo Cardeal Noé como uma apreensão diante de tantas manipulações em relação à Missa, tantas desobediências às rubricas, tantos desvios e antropocentrismos, a ponto de certos críticos católicos americanos falarem em “narcisismo clerical”: a liturgia, de serviço do povo a Deus, de culto público da Igreja, havia se transformado, na prática, em espetáculo pessoal na qual cada celebrante põe em andamento uma série de criatividades que considera “pastoralmente melhor”.

Esse o cenário com que se depararam, principalmente, João Paulo II e Bento XVI. O primeiro chegou a demonstrar, por sua grandiosa Encíclica Ecclesia de Eucharistia, que, ao lado de grandes luzes a partir da reforma litúrgica, havia também sombras. Em seu pontificado, para clarear as tais sombras, veio à lume não só uma melhor edição do Missale Romanum, como uma dezena de instruções para melhor aplicar as diretrizes litúrgicas, em que se destaca a direta Redemptionis Sacramentum.

Tal documento, ademais, é de responsabilidade do então Cardeal Ratzinger que, como acenamos, reiteradas vezes evidenciou a centralidade do tema da liturgia em sua monumental obra teológica.

Seu “Introdução ao espírito da liturgia” deixava já bem claras suas intenções como teólogo: era preciso resgatar, como diria mais tarde Mons. Nicola Bux, autor de “La reforma de Benedicto XVI”, os “direitos de Deus” na celebração. A liturgia não é um emaranhado de normas simplesmente positivas feitas por homens, não é um ordenamento puramente racional para que se tenha decência no culto. Mais do que isso, a liturgia é um culto disposto pelo próprio Deus, ainda que muitos de seus detalhes se dêem pela autoridade da Igreja e não diretamente por Revelação. É Cristo mesmo quem celebra a liturgia por meio da Igreja. Nessa seara, pois, todo cuidado é pouco, e toda reverência nunca é demais. Por bem menos do que os atuais abusos litúrgicos, Deus fulminou quem meramente tocava na arca da aliança, simples símbolo de Sua presença, e sombra do grande bem futuro que é a liturgia cristã...

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