As teorias estéticas contemporâneas propõem definições extremamente fluidas da arte, até mesmo líquidas, aparentemente elásticas e transitáveis, mas que frequentemente acabam por se revelar extremamente rígidas, com fronteiras intransponíveis.
Um desses limites, sub-repticiamente elevado, diz respeito à separação imperativa de arte e beleza, um limite exterior da arte com referência à transcendência. Essa abordagem lança muitos problemas teóricos para traçar uma definição do conceito de arte.
Gostaríamos de discutir a questão da relação entre arte e beleza, entre arte e transcendência, de um ponto de vista particular, ou seja, refletindo sobre o Magistério da Igreja. Nele encontramos não apenas indicações que têm valor para os crentes, mas também o fundamento sério e rigoroso de um discurso que se mostra como verdadeiro para cada pessoa.
Na Exortação Apostólica Sacramentum Caritatis, Bento XVI, refletindo sobre o espírito da liturgia, dá luz a uma reflexão sobre a arte a serviço da celebração, fundada na ligação profunda entre "beleza e liturgia"; em particular, lê-se: “O mesmo princípio vale para toda a arte sacra em geral, especialmente para a pintura e a escultura, devendo a iconografia religiosa ser orientada para a mistagogia sacramental. Um conhecimento profundo das formas que a arte sacra conseguiu produzir, ao longo dos séculos, pode ser de grande ajuda para quem tenha a responsabilidade de chamar arquitectos e artistas para comissionar-lhes obras de arte destinadas à ação litúrgica; por isso, é indispensável que, na formação dos seminaristas e dos sacerdotes, se inclua, entre as disciplinas importantes, a História da Arte com especial referimento aos edifícios de culto à luz das normas litúrgicas. Enfim, é necessário que, em tudo quanto tenha a ver com a Eucaristia, haja gosto pela beleza; dever-se-á ter respeito e cuidado também pelos paramentos, as alfaias, os vasos sagrados, para que, interligados de forma orgânica e ordenada, alimentem o enlevo pelo mistério de Deus, manifestem a unidade da fé e reforcem a devoção” (n. 41).
A arte sacra, a serviço da liturgia, visa à "mistagogia sacramental" e deve ser impregnada de "gosto pela beleza”. Suspendamos por hora, deixando a análise para um próximo artigo, a afirmação de que é "indispensável" que seminaristas e padres conheçam a história da arte, para formar o gosto pela beleza.
Destaquemos, por sua vez, a relação íntima e inseparável de arte sacra e beleza, fundada no coração da própria liturgia; no mesmo documento, agora lemos: "A beleza da liturgia pertence a este mistério; é expressão excelsa da glória de Deus e, de certa forma, constitui o céu que desce à terra. O memorial do sacrifício redentor traz em si mesmo os traços daquela beleza de Jesus testemunhada por Pedro, Tiago e João, quando o Mestre, a caminho de Jerusalém, quis transfigurar-Se diante deles (Mc 9, 2). Concluindo, a beleza não é um fator decorativo da ação litúrgica, mas seu elemento constitutivo, enquanto atributo do próprio Deus e da sua revelação. Tudo isto nos há-de tornar conscientes da atenção que se deve prestar à ação litúrgica para que brilhe segundo a sua própria natureza (n. 35).
A beleza, enquanto atributo de Deus, é elemento constitutivo da liturgia e também da arte sacra. Trata-se de uma implicação preciosa, que ancora a beleza da arte sacra em Deus.
Também em uma reflexão externa ao âmbito litúrgico e sacramental, uma séria consideração sobre a arte mostra como a beleza lhe é um atributo constitutivo, porque cada artista opera à imagem de Deus criador, e porque o belo é uma propriedade transcendente do ser, um atributo que tudo possui, porque, enquanto criado, participa do ser de Deus.
Este percurso é traçado por João Paulo II na Carta aos Artistas de 1999, dirigida a todos os artistas no mundo, definidos como "construtores geniais de beleza". Desta forma, João Paulo II dá ao artista o seu próprio campo de ação, destaca o coração de sua identidade. Não se trata de uma consideração puramente descritiva ou constatação de um fato, mas é quase a enunciação de um princípio, o convite a uma nova aliança entre a arte e a beleza.
A definição "construtores geniais de beleza" é complexa e profunda em cada termo. O substantivo "construtores" refere à clássica definição de ars como recta ratio factibilium, ou seja, um campo de produção: o artista é um artífice. É assim evocado um âmbito que infelizmente entrou em desuso em muitas teorias da arte, desprezado nas discussões sobre a real produção artística. O adjetivo “genial” dialoga com toda história da reflexão estética, enfatizando na posse de "gênio", a peculiaridade da arte em comparação com o artesanato e outras técnicas de produção. Mas é o complemento, "beleza", o verdadeiro coração da definição: a beleza é o objeto e a finalidade da própria arte.
Esta ênfase, que se coloca em continuidade com uma tradição multimilenar, é corajosamente contrastada com tantas estéticas contemporâneas do feio, que teorizam a fealdade como o verdadeiro campo artístico ou, pior ainda, propõem uma absoluta indiferença entre o belo e o feio. João Paulo II recoloca a arte no território da beleza, sujeita às regras do fazer, no reconhecimento daquele dom particular que usualmente é chamado de “gênio” e que, no contexto da Carta aos Artistas, revela-se como um talento natural e um dom do Espírito Santo.
O caráter imprescindível da beleza em todas as artes – pintura, escultura, arquitetura... – implica necessariamente um repensar da própria noção de beleza, que, como mostraremos nos próximos artigos, encontra a sua melhor clarificação na tradição aristotélico-tomista medieval e renascentista.
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* Rodolfo Papa é historiador da arte, professor de história das teorias estéticas na Faculdade de Filosofia da Pontifícia Universidade Urbaniana, em Roma; presidente da Accademia Urbana delle Arti. Pintor, autor de ciclos pictóricos de arte sacra em várias basílicas e catedrais. Especialista em Leonardo Da Vinci e Caravaggio, é autor de livros e colaborar de revistas. Desde 2000, assina uma coluna de história da arte cristã na Rádio Vaticano.*
Extraído: Zenit
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